Proponho levar a literatura ao encontro da Moda como sistema de representação cultural e examinar, principalmente, a roupa como construtora de identidades, notadamente sexuais e culturais e como condutora, também, de discursos simbólicos, tal como o livro também o é.
Gilda de Mello e Souza foi a precursora desse tipo de estudo no Brasil com sua tese defendida em 1950 e publicada apenas em 1987 com o título O espírito das roupas, a Moda do século XIX, em que desvenda justamente o papel da roupa como construtora de identidades sexuais, sociais e culturais na literatura, principalmente a partir das obras de José de Alencar, Machado e Assis e Marcel Proust.
Execrada à época pela rigidez de uma academia em recente processo de fundação, nem a bênção de seu orientador, o francês Roger Bastide, foi suficiente para que o trabalho da professora fosse considerado como fruto de uma pesquisa inédita e de grande fôlego. Tirando a roupa do ambiente da alcova, Gilda de Mello e Souza encontrou nessa outra pele, aparentemente tão supérflua e superficial, justamente um eixo central de uma sociedade, a novecentista, amparada em uma cultura das aparências. No fim, a roupa, como empecilho ao desnudamento dos corpos revelava muito mais do que escondia a respeito da elaboração dessas sociedades sobre suas identidades e suas idéias.
Ainda poderíamos citar o caso exemplar de Oscar Wilde, que com o dandismo e sua leitura crítica da arte e da sociedade vitoriana em O Retrato de Dorian Gray, viveu no próprio século XIX e representou alguns desses parâmetros estéticos não apenas em seu texto, repleto de linguagens em cotejo – como as artes aproximadas pela literatura – mas em sua própria experiência prática como esteta.
Nos últimos anos, dentro e fora do Brasil, entretanto, a Moda deixou de ser apenas produto e passou a ser examinada também como objeto de elaboração teórica. O trabalho recente de autores do campo das ciências sociais como Michel Maffesoli e Gilles Lipovestky, por exemplo, que estudam a sociedade de consumo e das aparências têm se dedicado há já mais de uma década a esse campo de estudo de uma forma não apenas inusitada – e que confirma a importância da roupa não apenas como “cultura material” (como diriam os antropólogos), mas como conformadora de idéias e práticas sociais mesmas.
Livros e roupas: museus portáteis
A roupa hoje, cada vez mais, nos aparece, segundo minha leitura, como um museu portátil. Se para o escritor chileno Roberto Bolaño o livro é um museu portátil, a Moda, que para Gilda de Mello e Souza é também uma forma de arte, conta uma história, podendo inclusive ser analisada do ponto de vista semiótico; vista como um micro-universo de lembranças, percepções, sensações e memórias coletivas ou individuais. Quem não teve ou não tem uma peça de roupa que conta ou rememora – faz viver – uma história? As roupas – segunda pele - nos cobrem e assim são recheadas por nossos corpos e nossas atitudes. Virginia Woolf viu isso em Orlando e foi além: “as roupas que nos usam, e não nós que usamos as roupas: podemos fazê-las tomar o molde do braço ou do peito; elas, porém, modelam nossos corações, nosso cérebro, nossa língua, à sua vontade.”
Se o poder da roupa é tão grande, por que foi evitado por tanto tempo? Muito mais recentemente, Isabel Allende, n’A casa dos espíritos também percebeu isso. Nívea, sufragista e mãe de Clara, falava logo no início dessa história repleta de trajetórias femininas de que não bastava às mulheres chegarem à universidade e ao voto: era necessário que pudessem se desvencilhar do espartilho, das golas justas e das roupas que não lhes davam a menor possibilidade de movimento e, conseqüentemente, de liberdade.
E em Orlando, a roupa tem esse poder. Quando Lady Orlando resolve manter as centelhas de liberdade que sua vida masculina lhe proporcionava, a possibilidade de sair à noite sozinha, de que estratagema ela se utiliza? Da roupa. Travestida, Lady Orlando volta a ser homem quando quer e pode fazer uso de uma liberdade inimaginável para as mulheres do severo século XIX.
Assim como Xima/Quima: “Xima, vestida d’home, calça curta, casaca de cuir, perruca blanca, bem peinada, a peu dret, sobre les runes enfangades del baluard de Santa Clara, veia avançar, entre la mitja llum del capvespre, els soldats del duc de Berwick.”
Vestida de homem, Quima pode ser soldado e assim defender sua nacionalidade catalã frente às ameaças estrangeiras. O que está em jogo, antes do gênero, é a identidade nacional. Para Maria Aurèlia parece que o ser catalão está à frente do ser “homem” ou “mulher” – o catalanista, o soldado, é andrógino, como o poeta de Virginia.
Virginia e Maria Aurélia: escritoras e assassinas
A escritora e ativista catalã, que chegou a ser conselheira da cidade de Barcelona e morreu em 1991, admirava Virginia acima de todas as outras pessoas no mundo e quando escreve seu prefácio a Quim/Quima não sabe bem como se dirigir à sua mãe literária:
Aquesta carta ha estat començada moltes vegades, mai no m’he decidit. La qüestiò del tractament em cal usar per dirigirme a la persona que admiro més del món i de la qual he après tantes i tantes coses. Sé que em aquesta terra anglesa el tu no s’estila i que molt pocs tenen el dret d’usar el teu nom: Virgínia.
Tradutora de Virginia Woolf, Marguerite Duras, Betty Friedan e prefaciadora das obras de Simone de Beauvoir ao catalão, Maria Aurèlia queria mesmo era matar o “anjo do lar” do qual falava Virginia em Carreiras femininas. A versão de Maria Aurèlia instiga a mulher de seu tempo a continuar “assassinando” o anjo do lar, pois somente assim poderia ser sujeito social e senhora de sua própria vida:
He assassinat l’àngel de la llar. I no ha estat fàcil, creu-me; potser per això me’nsento orgullosa. En primer lloc, no és gens senzill assassinar un àngel; no s’està mai quiet, vola i es fa fonedís, i reapareix quan menys t’ho esperes, i és tot dolcesa, i et captiva amb les seves ales blanques que fan olor de naftalina.
E vai além:
Aplica’t la història, senyora de bé, i creu-me: si vols fer alguna cosa de bo en aquest món, i no et resignes a ser un esbós de persona, assassina l’àngel de la llar; nomes així començaràs a viure.
Ou seja, para não ser apenas um “esboço de pessoa” é necessário que se torne, antes, assassina do tal anjo, símbolo do “eterno feminino” de que já falava Simone de Beauvoir no Segundo Sexo, para que só a partir dessa morte possa haver uma outra vida para a mulher.
Na literatura essa outra vida já era possível: é no “calco” e na pista de Orlando que Maria Aurélia Capmany empreende sua busca do ser total.
De Orlando a Quim/Quima
De Londres ou Sussex a Barcelona: Orlando singra pelo Canal da Mancha, contorna a península ibérica e chega à Ciutat Comtal. A romancista, ensaísta e dramaturga catalã Maria Aurèlia Capmany, publica, segundo ela mesma, o seu “calco” de Orlando. Em carta-prefácio a Quim/Quima escreve a Virginia Woolf, em 1971, atentando contra o rigor da História, como diria a própria Maria Aurèlia em Un lloc entre els morts, e respeitando um tempo todo seu e de Virginia.
Em algum momento de sua juventude no encontro com Virginia, a musa-autora já lhe havia vaticinado que a imitasse, porque ao imitá-la tanto mais se assemelharia a si mesma, nessa busca do outro mais se faria ainda mais autêntica:
Imita, imita sense escrúpols perquè no ho aconseguiràs mai. Com més fidel siguis al model que estimes, més seràs tu mateixa. Pots repetir tranquil·la el mateix vestit, la roba dibuixarà sobre el teu cos uns plecs inimitables, i el perfum, el mateix perfum sobre la teva pell bruna farà una altra olor.
Se o que sonhou para si mesma foi a cópia intencional de um Orlando em catalão, Maria Aurélia tornou-se genuína em sua obra-prima intertextual. Porque o que Quim/Quima faz é justamente repetir Orlando, mas a partir do ano 1000 da história da Catalunya e assim recriar ainda mais um tempo que só existe no texto e viver até as vésperas da Segunda Guerra Mundial, capítulo execrável da história espanhola, tanto mais para uma catalanista convicta.
Por outro lado, se Virginia discute o gênero e a literatura em sua obra, Maria Aurèlia busca mais a nacionalidade e a história de uma Catalunya refém da História. Duas escritoras presas em um tempo de mulheres à beira do abismo do espartilho e da crinolina – que também é armadura, posto que sirva de máscara à gravidez de uma Orlando travestida – mas livres no paraíso da literatura em que o tempo flui ou pára conforme o desejo do narrador.
Virginia vem de uma trajetória de obras em que a identidade feminina está em foco: Clarissa, a Sra. Ramsay, Lucy, Rachel existem em suas contradições. Orlando agrega uma vivência identitária e de gênero que ultrapassa suas predecessoras e suas sucessoras: ela pode experimentar os dois lados, sem nunca deixar de ser ela/ele mesma/mesmo, pois sua memória está intacta. Mesmo as pernas continuam sendo o seu grande atributo de beleza física: o que define Orlando em sua composição de macho ou fêmea é a roupa. A roupa muda, o que permanece é o texto e a busca pelo poema ideal.
Por outro lado, a personagem centenária de Maria Aurèlia – o Estado catalão? – tem a possibilidade de ir e vir em suas trocas de roupa e de gênero, acabando o livro como homem, depois de ter sido mulher. Ao final dessa narrativa, Quim pilota um jato, vê a ofensiva nacionalista espanhola sobre a Catalunya em 1938 e faz planos:
Se n’anava amunt, però no per sempre, tornaria a terra, però no sols perquè li agradava viure, sino perquè havia de resoldre moltes coses: casarse amb la Teresa, que l’estava esperant, examinarse de l’assignatura pendent, acabar la novel·la. I sobretot, endreçar l’humor dels homes, perquè la terra fos mès habitable.
Além das ilhas inglesas e da costa catalã a literatura perpetuou um espaço todo nosso: esse mundo – ainda que imaginário - é um lugar mais habitável, graças às trocas de roupa, de gênero e de letras de Virginia Woolf e Maria Aurélia Capmany.